domingo, 15 de maio de 2011

Caracóis


A vida pública dos homens-caracóis.

Houve um semestre em que dei aulas à noite, de segunda a quinta (sextas às vezes), e aos sábados o dia inteiro, num cursinho perto da Candelária. Terças e quintas, saía por volta das 21:40, seguia rumo à estação de metrô da Uruguaiana, e ao longo do caminho passava por pilhas de papel, pilhas de lixo, e o pior, por pessoas empilhadas como lixo.

Para quem não sabe, todas as noites vários grupos de moradores de rua e catadores de lixo reunem-se em pontos estratégicos do Centro do Rio de Janeiro esperando por outros grupos, estes por sua vez formados por pessoas que tiveram mais sorte na vida, os quais param suas kombis e descem com garrafas de água mineral, pão e sopa, muita sopa. O preço que os mendigos (e afins) pagam pela caridade não é muito mais do que se unir em uma rodinha e orar ao Senhor. Em resumo, sai barato.

O que eu via sempre e me chamava a atenção, no entanto, eram os homens e mulheres idosos ou jovens (mais fracos ou menos fracos) que chegavam, vestindo todas as roupas que tinham umas sobre as outras, procuravam lentamente por um canto seco (ou menos molhado, menos sujo), rodavam, voltavam, iam, retornavam e enfim paravam, mas durante todo esse ritual carregavam, em seus ombros e costas tortos e cansados, sacos, sacolas, bolsas, mochilas, trouxas, papelões imensos, enfim, tudo aquilo que possuem e que podem chamar de lar. A meu ver, são como homens-caracóis, tão publicamente ali às margens da Av. Presidente Vargas exibindo suas existências aos transeuntes, trazendo suas casas às costas mas incapazes de entrar nelas em busca de um minuto de privacidade e conforto que seja. Eles dormem, comem, urinam e defecam ali aos olhos de todos nós, os estranhos, que ficamos ainda mais estranhos fingindo que não vemos nada disso.

Atravessei este pântano ao menos quatro noites por semana, chegava ao metrô seguro, passava na roleta seletora, aguardava o trem rápido, entrava no vagão refrigerado, contava as poucas estações passarem e só então começava a me esquecer dos homens-caracóis que ficaram lá, aguardando. Não muito depois, deitava e dormia confortavelmente na minha cama. Mas não em paz.

3 comentários:

Monique disse...

É muito chocante o q vemos todos os dias pelas ruas do RJ.Temos q nos deparar todos os dias com cenas q não saem da nossa cabeça,q perturbam,q nos entristecem.

Rafael Lanzetti disse...

Um texto melhor que outro, companheiro. Parabéns!

Marcos AM Ramos disse...

Obrigado pelas visitas, e um obrigado duplo pelos comentários!!! Ter esse feedback de vocês dá uma força danada =)