Ele ainda pergunta, olhando-a já na porta, mesmo já sem fé.
- Você vai mesmo?
- Talvez um dia a gente...
- Você vai mesmo?
(Silêncio)
Ele insiste, dando chances a quem não está pedindo chance alguma.
- Tem certeza?
- ...
- RESPONDE!!! ... por favor...
- Tchau.
Ela vai saindo com uma pequena mala na mão, só leva o que é dela. Talvez ele nunca tenha sentido um gosto tão amargo. Nem há nada em sua boca... ou na verdade há. Há algo em sua boca. Há um “adeus” preso, esticado pela garganta, uma palavra que existe, que pensou, mas que não permite que saia. Parou ali, sobre a língua. O estômago então começa a doer, tão intensamente quanto a sensação de vazio.
Permanece ali, parado, sentado na beira da cama. Fica assim por uns dez minutos e alguns segundos que, realmente, não são importantes para se contar agora. Olha fixamente para o rodapé, mas a mente vaga entre o nada e o confuso. É quando a mão direita se eleva e afaga a barba que emoldura o rosto, um rosto que é mais jovem do que aparenta. A mão passa lentamente uma vez, outra, se detém no queixo e então o traz de volta à realidade que, no momento, não é muito agradável. A foto ao lado da cama mostra o rosto daquela que se foi, aquela que ele pensou que ficaria, ou que ao menos ele queria que ficasse. A foto nem é tão boa. O cabelo desgrenhado cobriu um dos olhos, e o outro parece encará-lo, parece culpá-lo. Sabe qual é o problema? Memórias são involuntárias.
O céu está acinzentado, vai chover. Olhando pela janela, ele a vê, lá na rua. Ela está indo embora mesmo. Ela ainda chega a olhar pra cima, para a janela, quando um primeiro pingo de chuva atinge sua testa e escorre para o olho. Sorte que ela não está vertendo sequer uma lágrima, ou não saberia distinguir o choro da chuva. Vira o rosto e volta a encarar o asfalto, a seguir seu caminho até a esquina, onde pretende pegar um táxi. Não demora e chega um.
- Pra onde, senhora?
- Vai seguindo que daqui a pouco eu decido.
- ?
O taxista estranha, no entanto não há o que discutir, desde que ela pague a corrida. Ela ainda não sabe se vai direto para a casa dos pais ou se pára antes, na Igreja de São José. Foi lá onde se conheceram, há dois anos, no casamento de sua irmã. Ele era convidado do noivo, amigos de trabalho. Foram apresentados pelos recém-casados, e se essa história de “química” fosse real teriam entrado em combustão espontânea. Quando volta ao presente, ela percebe que a igreja já passou, nem viu. “Tudo bem”, pensa. Segue para a casa dos pais. Decide que amanhã, de manhã, lá pelas nove, ela vai passar na São José, ficar um pouco, meditar um pouco, só pra lembrar.
Ele? Ao sentir a chuva em sua nuca, resolve abrir a janela toda para que, quem sabe assim, o vento gelado entre livre e renove o ar daquele apartamento minúsculo no oitavo andar. Sua cabeça está a mil, a vontade de gritar, urrar e esmurrar é angustiante!!! Resolve então pôr uma música pra tocar bem alto, aperta o botão sem mesmo ver. A música é... é Lover, You Should’ve Come Over, Jeff Buckley. Maldição. Seu primeiro impulso é tirar, mas algo o detém, as lembranças de certos momentos, dos dois juntos, dela aninhada em seus braços, tantas coisas, tantas...
A saudade coça o céu da boca.
Talvez o maior problema seja esse perfume que ela usava. Usa. O cheiro insiste em ficar em tudo, mesmo onde não está. O cheiro está em seu nariz. O cheiro está nele mesmo, dentro e fora. O cheiro dela. A saudade tem cheiro, som, nome e gosto. O telefone de casa toca. Ele hesita, mas atende.
- Alô?
- Querido? É mamãe! Tudo bem? Você não vem mais aqui, não liga, eu fico preocupada!
- Tô bem, mãe. Tô ótimo.
- Ah, que bom. Assim, sim. Agora chama essa sua mulher aí que eu quero falar com ela, precisamos marcar de...
- Olha mãe, agora não dá. Ela... Ela tá... Ela saiu.
- Saiu? Ela foi no circo?
- Circo?
- É, o Orlando Orfei ta lá na Praça XI. Ela foi ver “a beleza das águas dançantes”?
- Pô mãe, sei lá. Ela só foi, só isso.
- Mas por que você não foi?
- Eu não gosto de palhaços. Não gosto das sacanagens com os animais também.
- Hmmmmmm...
- “Hmmm” o quê, mãe?!
- Nada. Só estranhei. Eu hein, nervoso...
- Olha, mãe, eu tenho que desligar agora. Tô cheio de coisas pra fazer.
- Tá bom, querido. Não some, tá? Cuidado com esse tempo doido.
- Tá. Tchau.
Ele se pergunta se todas as mães são chatas ou se isso é um complô. Será que todo relacionamento que envolva um amor muito forte acaba enjoando com o tempo? Fica desgastado? Acaba? Muda?
De repente, quando os sentimentos se confundem, é preciso se afastar de tudo e de todos. Ele imagina se algo dentro de si mesmo basta, sozinho, para fazê-lo feliz por ser sua melhor companhia naquele instante. “Quem precisa dela?”, pensa. De repente, não era mesmo para que eles ficassem juntos. Quem sabe desse tal destino? Quem sabe se... se... se... se...
Após desligar o telefone, ele volta à janela para tomar um pouco de chuva gelada na cara, no peito, para acordar, clarear a mente, pensar, pensar. Finalmente uma decisão surge, uma clara decisão. Uma memória boa, de um tempo em que tudo prometia ser mais que perfeito. Lembra-se de um lugar especial, um lugar que ele não visita há muito tempo, mas que sempre está à sua disposição, aguardando-o para momentos justamente como este.
Por hoje, cinco da tarde, a casa é a concha na qual ele precisa se guardar um pouco. Mas amanhã, logo de manhã, lá pelas nove, ele vai passar numa igreja que tem ali mesmo no bairro, a São José. Ficar um pouco, meditar um pouco...
Só pra lembrar.
7 comentários:
Eu não tenho palavras que possam descrever a beleza, a fluidez e a intensidade do seu texto!
Muito obrigado, anônimo. Chego a ficar sem graça com sua reação, mas aprecio demais seus elogios, lógico. Tive medo de um texto tão grande espantar os leitores (como já é sabido que acontece...).
Quem vem ao meu blog sabe que não costumo responder os comentários postados, não por desconsideração aos leitores, jamais, apenas por não saber o que dizer. Acontece que, em vista do que você escreveu, o que escrevi chega a ganhar mais brilho, e fiz questão de externar isso.
Obrigado.
Bom isso. Mas a beleza das águas dançantes foi a melhor parte.
Phoda, Marquinho!
Vivo!!! Intensamente vivo! E, quase que surpreendentemente otimista.
Pois não se surpreenda, bela Karina: é otimista sim!!! Este foi o primeiro conto que escrevi na vida, há uns 10 anos, e o que eu quis dizer foi mais ou menos isso: que apesar de complicarmos nossas vidas com nossos gestos ridículos e nossa insensatez, tem alguma força por aí que faz com que o que deve ser certo dê certo.
Isso pode ser otimismo, pode ser esperança, pode até mesmo ser fé, mas... melhor não dependermos apenas da sorte, né? Então, espero que eu mesmo tenha aprendido algo com o conto que escrevi.
Por que você tinha que postar algo tão intrínseco à minha vida nesta data, hein?!
Maquito, como otimista incurável que sou, insisti, insisti e consegui vir aqui publicar meu comtentário, viu? :)
Sobre "Bogari", vi que vc fez algumas mudanças / atualizações.
Se não me engano, na primeira versão, ela tinha gravado Air Suplly e não Jeff Buckley em cima das músicas dele, rs...
Gosto muita da parte em que diz que "Memórias são involuntárias". Para mim ratifica a estreita relalção entre elas e o coração, que tb tem movimentos involuntários, rs... Se pudéssemos controlar as memórias...
Se pudéssemos controlar o coração...
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