domingo, 18 de outubro de 2009

Loucos


Antônio observava loucos. No ônibus, ficava quieto e quase imóvel, movendo apenas seus olhos para identificar os que surgissem ao redor. Uma senhora falava sozinha e sem parar, mas nada se ouvia do que ela dizia. Um senhor reclamava de tudo, absolutamente tudo, praguejando e chamando por Deus e Jesus Cristo vez ou outra. Uma menina meio emo, meio roqueira, meio qualquer coisa desse tipo fungava com frequência e ritmava fortes piscadas de olho com as fungadas que dava. Antônio achou que ela era lésbica e depois se perguntou por que achara que ela era lésbica, mas não soube responder, mesmo continuando a achar o que achou.

Assim, Antônio ia fazendo seu inventário dos loucos que encontrava pelo mundo. A velha que falava sozinha em silêncio, o velho que praguejava aos berros em nome de Deus e a lésbica que fungava e piscava de forma ritmada eram agora os novos listados e juntavam-se
- ao travesti coberto de talco que anda pela rua murmurando "que nojo, que nojo";
- ao homem que grita "SIM!" enquanto desenha anjos gigantes no asfalto com um pedaço de gesso;
- à bêbada que chora pelas ruas chamando por sua "mãezinha" e pedindo R$2,00 a todos que passam;
- a tantos outros.

Sua sala e seu quarto eram tomados por bloquinhos que catalogavam os loucos já encontrados, mas não havia como organizá-los em ordem alfabética, uma vez que não se sabia o nome de nenhum dos listados. Eram meramente empilhados em ordem cronológica, e isso frustrava Antônio.

Era uma tarde morna e Antônio voltava pra casa olhando as multidões de forma meticulosa, mas todos pareciam inesperadamente normais naquele dia. Lembrou de que precisava ir ao banco fazer um depósito ou sacar um dinheiro, não conseguia saber ao certo, mas apostou consigo que, chegando na agência, certamente lembraria do que fazer. Na fila, aguardava atento (quem sabe um louco lá talvez), mas a única coisa que chamou sua atenção foi a imensa bunda de uma senhora gorda que vestia uma justa calça de ginástica que não lhe caberia em qualquer outro contexto social que não fosse o do Rio de Janeiro. Perdeu-se tanto em devaneios ao olhar para aquela bunda disforme que sua demora foi suficiente para a mulher notar que era observada. Antônio deu-se conta quando já não havia mais o que fazer. A mulher virou-se com fúria e gritou "TÁ OLHANDO O QUE, Ô BABACA?!?!? VÁ OLHAR PRA TUA MÃE, SEU IDIOTA!!! SEU LOUCO!!!".

Antônio sentiu um choque gelado. Saiu do banco apressado, correu pelas ruas, chegou em casa bufando, suando. Avançou em direção ao primeiro de todos os seus blocos, o primeiro, onde tudo começou. Respirou. Pegou uma caneta. Respirou fundo. Escreveu, anotou, desabou sobre seus joelhos e libertou seu pranto em soluços.

Finalmente havia uma ordem alfabética. Finalmente, lá estava, grande e azul, imponente, a primeira...

... a letra "A".

"A", de Antônio: o louco que desperdiçava sua vida observando a vida dos outros loucos.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Quantas


Deve haver uma forma mais fácil, e se eu descobrir qual é, juro que na próxima vinda eu tento.

Dessa vez, agora, já foi. Eu até tinha achado que daria, que tinha como ser, repito para o meu reflexo no espelho do banheiro que o que se podia foi, de fato, tentado. No entanto, quando paro e fico olhando um pouco mais fixamente para o reflexo, ele levemente parece acenar que não.

Se TUDO o que se podia foi tentado? Foi sim, mas não foi alcançado. Se o resultado esperado foi mesmo o que aconteceu, impossível precisar, mas se ao menos foi o resultado honesto, talvez isso explique a serenidade que agora sinto diante de algo que é mais do que a escolha que fiz, mais do que o caminho que se desenvolveu naturalmente diante de mim: é o justo. Antes de dar o passo matinal que me levará para fora, levo a mão lentamente rumo à maçaneta antiga da porta da sala, já meio solta e com bastante folga, mas igualmente tão bonita em sua idade, e pergunto quantas mais. Quantas? Tantas.

Nas noites em que passo horas calado por falta de ter com quem falar e não como por não imaginar o que comer, deito tarde para dormir e percebo com mais clareza que o chão do quarto tem um leve declive, e que a cabeceira da minha cama (que não tem cabeceira, mas sim um lado escolhido para ser o da cabeça) fica na parte mais baixa. O sangue a mais que passa a visitar o cérebro ao longo da madrugada deve estar sendo o responsável pelos sonhos que ando tendo, nos quais aparecem todos ou quase todos que conheço, que estão ou que já estiveram na minha vida. Tenho sonhado com grandes grupos de pessoas, amigos e familiares. Estamos numa festa, num restaurante, numa casa de praia, na faculdade, na empresa ou em elevadores imensos e sem paredes... Inúmeros, incontáveis, tanta gente, pessoas em quem eu nem penso ao longo do dia, de quem sequer me lembrava. Aparecem todos juntos, interagindo até mesmo indepentes de mim, justo de mim, o sonhador, aquele que os sonha durante aquele espaço de tempo impreciso, aquele sem o qual nenhum deles estaria ali.

Nessa hora, meu ventilador de teto me atenta para o fato de que, a despeito do que eu imaginava, a vida não congela fora do meu campo de visão. "Mas como?", digo franzindo. Pois é. Surpresa surpresa: as pessoas com quem convivo continuam a fazer coisas quando não estão comigo. Isso inclui aquelas que um dia amei... Outras pessoas falam com elas coisas que não ecoam até onde estou, vivem amores que não compreendo, fazem cenas que não assisto e sentem perfumes que não provo. Existe um "depois" na vida delas, um depois onde deixo de ser o referencial de suas existências como de fato sou, aos meus olhos, enquanto estão comigo.

Agora, quase como um apóstolo Pedro crucificado, deito, durmo e sonho de ponta cabeça com multidões que interagem comigo mas também entre si. Suas personas sonhadas por mim falam-se coisas que não ouço e depois vêm me comunicar suas decisões, seus acordos aos quais eu estava alheio. Me abismo.
Meu abismo?

Esse ventilador de teto um dia vai me decaptar, ou cair cravando uma de suas pás em meu peito.