segunda-feira, 11 de março de 2013

Ode


Acordei cedo naturalmente pela primeira vez na vida, como se fosse a coisa mais natural da vida, como se fosse natural eu ter vida tanto quanto eu sentia que tinha, ali, ao seu lado. Você já estava acordada, me olhando como quem procura um erro, me emaranhando no pântano desses olhos. Não consegui te dar bom dia, eu não conseguia falar. Sua expressão sequer mudou, fora um lento piscar de olhos e um ajeitar de ombros para reencaixar o travesseiro que estava viciado da noite.

Não pude lembrar se estava na minha cama, no meu quarto, num fim de semana. Não pude enxergar referências porque não havia mais nada ao meu redor. Éramos nós e um perfume... um perfume novo, diferente, que não existe de verdade. Algo assim deveria valer uma grana, pensei, mas algo assim não tem um preço que se possa pagar.

Estiquei meu braço e passei as costas da minha mão em seu rosto, mais para tirar a dúvida de se você realmente estava ali do que pra te afagar, e me veio à mente uma ideia maluca de que agora dava para imaginar o que acontece quando se salpica canela numa rosa chá. Deve parecer assim, com você. Sem mais metáforas, deve ser bem assim mesmo.

Eu ia chegar na parte em que descrevo seus cabelos, mas você quebrou o silêncio com a boca ainda meio coberta pelo lençol de seja lá onde estávamos, e disse "tem uns fios brancos na sua barba", e eu disse "alguns", e o silêncio se recolocou.

Os dois olhos verdes agora baixavam-se e a testa franzia. As mãos pequenas e brancas puxavam mais lençol, mais lençol, mais lençol até que não deu mais. Nadou em minha direção, se encolhendo até que sua testa encostasse em meu peito, seu joelho em meu quadril, puxou meu braço para abraçar-se em mim. Não disse mais nada.

No mínimo que ainda faltava, me aproximei, colei meus lábios em seus cabelos e só então, finalmente, respirei.

Ninguém mais vai te fazer mal
I am here now

terça-feira, 5 de março de 2013

Existente


Sentado em sua baia, totalmente curvado, com a cara quase enfiada na caneca vazia que ele segura firme enquanto encara, vesgo, o fundo manchado por anos e mais anos de café. Pensa que devia reduzir seu consumo de carne vermelha. Pensa que não há saída. Pensa em como tem achado seu rosto inchado quando se olha no espelho ultimamente. Pensa que já é hora de cortar as unhas, mas que isso ainda pode esperar um pouco, afinal, nem estão tão grandes assim.

Por toda sua juventude, imaginou que alcançaria uma vida perfeita: sairia de casa aos 18, estaria casado aos 24, seria pai aos 28, teria um consultório só seu... não, um consultório não, um escritório... não, nada de escritório também: teria um atelier, um estúdio! Só seu. Seria renomado, reconhecido internacionalmente, talvez. Com sua fortuna, levaria uma vida boa e segura, construiria um orfanato e um asilo de qualidade, onde todos seriam sempre bem tratados, com dignidade. Com sua fama, espalharia nas mídias a conscientização de que o mundo pode ser um lugar melhor se todos passarem a se aceitar e se respeitar (uns aos outros e a si mesmos) exatamente do jeito que são. Talvez um dia ganhasse o prêmio Nobel da paz, seria muito merecido. Seria muito bom.

Mas tudo que seria não era o que é. Flagra-se ainda olhando fixamente para o fundo manchado da caneca vazia. Pensa que qualquer dia vai quebrar essa caneca acidentalmente de propósito só para poder comprar uma nova, sem manchas. Ergue suas costas lentamente, puxando toda a podridão do ar-condicionado central para dentro de seus pulmões e então, curvando-se para trás, abre os braços, se espreguiça, quase grita. Treme. Volta à posição em sua cadeira, como que se fechando sobre si mesmo. Esfrega os olhos só com as pontas dos dedos de uma mão, ajeita-se para a frente, mexe no mouse para acordar a tela. Olha ao redor, tenta lembrar quais são os prazos do dia. Os prazos os prazos os prazos os prazos os prazos. Olha através de dois corredores para que só então sua visão alcance uma janela, uma janela que tem vista apenas para as janelas espelhadas enfileiradas fechadas do edifício comercial em frente. Ele se imagina refletido nelas, mas não vê nada na verdade. Imagina alguém lá, olhando pra ele de volta. Volta-se para o computador, há prazos. Isso tudo o entorta cada dia um pouco mais.

E essa moça do café que não passa. Já vai dar onze horas.